2007-09-22

ida ao ikea

participo na arrumação do teu projecto iniciado.
envolvo-me em compras de ilusões a cores.
comparo preços de artefactos novos que afirmas trazer com promessas de um novo viver.
pesquiso sorrisos em forma de brinde nas prateleiras expostas.
gasto a possibilidade de te acompanhar.
desarrumo o meu pensar enquanto mexo a vida em coisas nenhumas.
quase gosto desses pratos. e desses copos. e dessas toalhas. e desses lençois. e desses talhares. e dessas almofadas. e deste vazio do armário.
procuras a referência das cortinas. eu procuro a saída de emergência.
caminhamos lângidos de fita para medir os passos dos outros. não os nossos.
paramos em silêncio. deambulo tonta por entre o teu sentir ambíguo.
alinho as compras pelo código de barras que o tapete engole pesarosamente.
o sofá é estupidamente desconfortável para o meu sofrer. compra.

2007-09-16

quando lia natália correia...

tens sangue a escorrer no cabelo
queria lamber o olhar ausente de ti
acossar-me num pérfido desejo de te morrer agora
não depois. não antes. agora
faltam cinco minutos de eternidade para chegar a lado algum

corro na urgência paciente farejando a navalha da nudez
com que estendes a alma na cama
anulo a lembrança do tempo que não tenho
absurda convicção de que te despenharias no carrasco
do grito dilacerante com que te reservas aos anfitriões da morte

estouro com riso à beira do teu caixão
onde derramo água benta para esconjurar
os espíritos malignos da madrugada

na febre gelada deste sacrilégio escolho o bem cruel
e bebo um cálice de aguardente rodopiando
num festejo infantil da impotência do que sou
gesticulo grosseiramente na forja nauseabunda
daquilo que julgo ser capaz

A maioria foi até ao fim
tu não
porque não me dizes agora o que repetias cansadas vezes
como se de uma voz esventrada se tratasse
nasci morta
foi um alívio
e o filho da puta do sinal intermitente que não muda
quanto tempo falta para o tempo da vida metamorfosear
o meu corpo morto

2007-09-14

depois desta morte não há mais nada

Depois desta morte não há mais nada para além do teu olhar sofrido em ruídos ensurdecedores.
Ou talvez haja. O abismo de nós. Em queda livre sem suporte de mim.
Na ausência de ti.

Escudamo-nos em subterfúgios estúpidos. Vazios.

Passos ocos invadem a cama onde os corpos mortos se anunciam. Estamos longe. Muito longe. Pensarão outros que a cama é a paz anunciada depois de um dia de fuga. De muitos dias de fuga. Cansaço que não mata. Mas mói. Mói o negro da nossa presença.

Esqueci-me do teu cheiro. Fujo da tua pele. Agonio se me deito só.
Vomito desesperada solidão se te deitas ao meu lado.
Lembras-te quando fazíamos amor.
E agora resta-nos a complacência dos dias arrastados.
Passos lentos de desnorteados vazios.

Risquei o teu número de telefone na esperança que mo devolvas ontem.
Fiquei de fora. Abri brechas pelas circunstâncias na busca de novos rumos
O programa das relações não foi decifrado.
Lembra-me para comprar um descodificador. Quanto custa ampliar causas evitáveis do estado de nós.

O locutor anuncia uma notícia que não quero ouvir. Diz: o desenvolvimento explosivo das comunicações abre possibilidades gigantescas de difusão de informação. O convidado comenta que a parte fundamental do nosso papel exige um esforço para responder às demandas destas exigências.

Abandonamo-nos amanhã. Imobilizados estendemos os esqueletos nauseabundos de cheiro a morte ao sol onde chovem calhaus de sangue sem cor. A negociação permitirá detectar pontos comuns, identificar vantagens para todos na execução de acções conjuntas. Detesto gravatas. Aborrece-me os sorrisos desordenados do locutor sem destinatário. Esquizofrenicamente aumento o volume da televisão.

Deito-me de olhos abertos para não ver os meus despojos.
Deixei de esperar por ti. Tens um copo de leite junto à cama.

flores murchas

A solidão tornou-se impermeável
A uma folha de jornal
Quedo-me neste banco de jardim
Entrei pelo meu pé no caixão
Ergo-me do chão indiferente aos milagres que alguém vocifera
Comentam maldades na esquina a quem acredita na cegueira do acaso
Um vendedor de flores murchas escolhe o vazio para resgatar nadas
Estou acorrentada a uma lágrima de ferro
Os passos vão pelas ruas e eu não sei parar
Dormi doze horas. Fiquei farta
O coveiro tropeçou no meu sono exausto
Disse que não podia ficar lá
Que estava viva.

2007-09-13

hora de almoço

Almoço com urgência mesmo sem ter compromisso
Mordo a sopa em angústia dilacerante porque me sinto mal
Trinco vidros estilhaçados
Que me rompem lentamente a garganta
O alarme não soou quando chorei
Passei tempo demais a accionar a saída de emergência
A barra não abriu
O tempo passou
Alguém graceja com a água pura da nascente natural
Que não é natural. Nem naturalmente pura
Refugio-me na colher da sopa
Bela inox. Made in Italy.
Oxidei a ausência de mim
A lâmina que retalhou o meu sorriso tem ferrugem
Bela inox.
Este estabelecimento tem livro de reclamações
Reclamo. Reclamo-me.
Compenso o peso das lágrimas com uma fatia de bolo que não sabe a bolo
Incongruente digo à empregada que o bolo está delicioso
Desconexa conveniência. A empregada fica feliz. Eu não.

2007-09-06

sem titulo

assim. sem título.
a recusa em criar amarras dos traços espontâneos desta escrita íntima.
sinto a ausência do papel branco. e do lápis. e da afia. desconfio da duração desta forma de estar. e não querer estar assim. desconforto. ou talvez não. há lugar para a construção.
porque me é necessário partilhar sentidos.