2008-01-28

o veneno diluido no café pesou-me a alma

Inclinas-te para o interior do sonho que se apagou na memória demolida de mim. O rosto ficou morto nos escombros de um papel escrito. Talvez um recado caído no chão do corredor que os meus passos davam em direcção a ti. Abri as pálpebras e senti o vento torcido que desceu de uma voz pesada eterna sobre o aço inocente da maçaneta da porta. Segredei nada. Ambos destruídos. Mas tu mal entendias a língua que te segredava. Corto os pulsos e esgueiro-me em sussurro aprisionado para o navio da alma que partiu. O quarto estava escuro. O tempo era muito tempo na linha do horizonte. Como se estivesse a esconder a palavra sol. Escrevi a giz numa parede polida afundei-me em ti. E quando acordei queimei as mãos na surdez do calor que flutuou nos ombros. E abriu-se uma fenda de fogo púrpuro sob o meu rosto de orvalho. Frente ao espelho fingi o sono que não dormi. A morte metamorfoseou a insónia do coração. Pouco a pouco nunca estive aqui. Tenho a certeza que fui envenenada momentos antes de prosseguir com a morte que anunciei há quinze dias. Retomo o monólogo que perscruto nas palavras silabadas no recado de um papel escrito. Talvez estivesses a jantar e não te sentisses atraído para o recado do papel escrito. Penso até que continuas-te a tentar comer, calmamente, sem dar grande importância ao arrepio que me percorreu a espinha mas ao fim de alguns minutos corri para a casa de banho e vomitei a minha existência. Abri-te os olhos com a ponta de uma faca e sentados no banco de um jardim ocorreu-me de repente que não sabia o teu nome.

2008-01-02

na manhã seguinte ficamos com as mãos na cabeça

eu talvez quisesse sorrir.
a palma da tua mão estava aberta.
pousas-te a ausência do teu olhar no sofá encostado à lareira que não te chegou a aquecer.
senti cada instante das noites que nos aproximou.
talvez tivesse querido oferecer-te uma fotografia a preto e branco. tenho quase a certeza que falaria do caminho que falta para chegares a casa. seria uma fotografia nublada de sentimentos, uma espécie de feira de recordações de amanhã que passam em dor por nós. por ti. sacos de lágrimas enbrulhadas em panos aos xadrez, sapatos deixados ao acaso, restos de comida e vinho tinto espalhados pela mesa, cigarros de todos e não de ti, mala enfiada no ombro para saíres com urgência. mas vais ficando porque as portas estão fechadas. a fotografia da feira foi-se tornando num esqueleto de ocasiões carregadas daquele dia que te lembrava os dias anteriores.
às vezes ficavas sentado enquanto comias pesarosamente. comias nada com um garfo sem história da alumínio polido. seguravas uma navalha enferrujada com a mão esquerda. a corda estica até à noite anterior. e antes dessa noite os teus movimentos trôpegos pareciam levar-te a um sítio onde as chamas avançam por uma porta aberta encostada ao teu peito. os teus passos eram um ruído leve. havia uma camada fina de céu sobre o teu rosto.
começamos a chorar-te das sete horas até sempre. a lareira ficou em braseira.
não é muito tempo e a distância para chegares a casa é a de um sopro de luz que vais dobrar e guardar numa gaveta num sítio seguro. porque precisas desse som liso do abrir da gaveta usada. gasta. solta. esgotada. imaginada. vivida. aproximada. distante. ternamente morta.