2009-01-28

não tinha sono nem vontade de o tentar

não tinha sono nem vontade de o tentar. dormi um sono oco. o sono dos culpados a latejar morno e lento. já tinha visto esta ilusão e acordei ao alvorecer num quarto de hotel negro e vazio. fazia silêncio que se sentia no estômago. no corredor cheirava a café e pão fresco. esperei-me durante um tempo na banheira tentando lavar a alma iludida. reservei-me aquela imagem em desuso de uma mulher banhada em nuvens de espuma. turbilhão de ideias. eram palavras tão solitárias e difíceis de explicar que os olhos não conseguiam conversar. refugiei-me no abismo ferida de identidade. o telefone tocou. senti que o muro daquelas paredes me apertava a garganta e à falta de palavras mordi a voz. consenti descer em meia hora. soube nesse instante que não o faria. o rumor dos passos do quarto ao lado confundiu-se com a alavanca do elevador. fechei os olhos. parei. para saber depois continuar. havia um homem ao dependuro. como se a oferecer-se maior coragem para ver o mundo ao contrário. outros viram um corpo tão amontoado de solidão tão inerte de burrice como outra coisa qualquer. senti o juízo lamber o coração perdido. sepultado numa claridade letárgica. e eu não quero ser nada senão o sentir duma réstia de felicidade. a banheira cuspiu a água e o meu corpo emergiu confundido com as estátuas dos anjos pendurados no beiral da janela. talvez fosse mais fácil descer os olhos em pretexto de circunstâncias inequívocas como que apanhada num pecado que não queremos voltar a cometer. os anjos perscrutam a alma e o universo inteiro interpõe-se secretamente na vida. tudo o que fazemos é parir consternação com tal fúria que não percebemos o alcance do amor. tropeçamos em alguém que não tem medo do mundo e achamo-nos capazes de conter a hemorragia da sombra do que somos. há piores prisões que as palavras desmoronadas em assembleias secretas de autocomiseração ao alcance dos outros. estou capaz de errar mais do que nunca. porque não será erro senão experiencia. permito-me alterar o padrão. senti um ligeiro frio na boca. em tempo de mudança todos somos espiões dos nossos próprios actos. desenhei um sorriso. Um manto de inquietações que se punha nos meus lábios não sei se vindo de dentro mas dominou os pensamentos como se receasse ficar no recinto. e se esta vida se desmoronasse havia de ser o momento de sorrir. julguei destilar o medo por razões que me estiveram vedadas. observei aquele gigante que vagueia como uma alma sem dono e balbuciei a única coisa que me fez sentido para agigantar ainda mais a certeza do que sou. o amor cura. saio do quarto que não me pertence. fecho a porta sólida que contrasta com a certeza liquida que tem sussurrado a verdade. fixei o indicador na fita cola que ampara um papel escrito. ao centro da porta do quarto que não me pertence. não ao lado. não em cima. não em baixo. ao centro da porta do quarto que não me pertence afixei uma nota. fui à minha procura. volto em breve. qualquer assunto pf ligar. deixei o meu contacto. quero que saibam onde estou. a senhora da limpeza observou-me num misto de receio e ousadia que o calor artificial do ar condicionado do hotel parecia ter-lhe congelado o rosto.