2009-11-10

visita a AFUA

Os caminhos sinuosos são mais demorados e por isso deixam-nos usufruir com mais calma as pessoas, as conversas, o estar. Pedir direcção. Para onde quero ir. Nós sabíamos. Ter direcção só não chega. É preciso saber como ir.

O bairro. A organização. O verde. As casas. As ruas sem carros. Ou poucos carros. Bonito. A alma gosta de organização. Penso: por isso não gostamos dos espaços confusos porque também nos confundem. Nós somos também o espaço que ocupamos.

O café. No bairro. Dentro as pessoas velhas. Gordas. Magras. Sem dentes. Com dentes. O avental a dizer tantos afazeres da alma porque o corpo até tem tempo. Grata pelo pequeno-almoço que me ofereceu querida. A jovem. Magra. Talvez demasiado. Está lá há 6 meses. Não gosta de coscuvilhice.

AFUA. Última casa do bairro. Sinto: é bom ser a última porque me dá a oportunidade de sentir este caminho, de ver as pessoas na rua, olhar para as janelas e adivinhar as rotinas nas casas. Talvez as mulheres estejam a fazer as camas, a arejar o quarto. Talvez os homens estejam juntos a conversar sobre a vida. Talvez.

Entramos. Gosto de entrar com o grupo. Estou feliz por partilhar esta visita com pessoas bonitas. A entrada é simpática. As cores. Os trabalhos expostos das pessoas dão tanto significado ao espaço que é dessas pessoas. A Joana sabe acolher. Acolhe-nos. Sinto-me à vontade. O computador deixou de ser dos técnicos porque os utentes precisam dele. Alternativa: trouxemos os nossos portáteis. Sorrio. Faz-me sentido.

A AFUA nasce da necessidade das famílias que sofrem por ter filhos, maridos, mulheres com doença mental. Penso: o que é ser doente mental? Qual a fronteira? É isto a intervenção comunitária. Os técnicos são úteis às pessoas e não usam formas de poder. Ajudar. Partilhar. Beneficiar.

As ocupações são tão válidas aos meus olhos. Grupos onde se discutem notícias do mundo. Teatro. Relaxamento. Computadores. Entrada de livre vontade. O ser humano não gosta ser obrigado. A força é inútil.

A luz. O jardim. Senti que a boa vontade de trabalhar com as pessoas é superior ao constrangimento do espaço pequeno. Olá Susana. Prazer. Placards na parede a ajudar a organizar as cabeças que alguns dizem que não funciona. A mim provaram o essencial naquela manhã. O amor. O sorriso. Os abraços. As fotografias. A disponibilidade. Eles agradecem. Nós agradecemos. Eu sinto-me mais rica como ser humano.

O regresso. Carro cheio. Vá mais devagar Susana. Abrandei. Aprendi naquele momento que a prioridade não era chegar a custo. Era estar serena naquela viagem. Chegamos. Eu fico aqui. Eu desço consigo. Olá Irene. Um abraço terno. Ate para a semana. Ate já.

2009-09-16

raizes nas ondas do mar

serenamos os corpos nus diante da chuva quente a cair miudinha e contei-te uma estória de crianças daquelas de encantar e fazer sorrir. era uma vez uma menina que quis semear amigos com raiz nas ondas do mar. o mar tem olhos comovidos e por isso chora lágrimas de sal. disseram que espuma branca do mar não pressente raiz e que só a terra mãe inventa sombras com direcção ao tronco que ergue sabedoria. como sonha ternura a menina reservou o brilho da lua que faz nos dedos a escrever verdades e amarrou o tempo para decidir. veio a manhã agarrada à vida e ela escorregou no tempo para espreitar o futuro. ela tinha pensamentos de cabeça barrentos daqueles que fazem cócegas no profundo. as conversas de ontem dão paz aos sentidos mas também cedem à solidão de que às vezes somos portadores. cresceu o pescoço como girafa de selva livre e respirou a brisa das nuvens. no corpo enamorado pela praia estão guardadas conversas de outras margens tombadas por um artesão de sonhos contra lógicas sacudidas pelo olhar de uma criança. as crianças são sementes de amor. as crianças brincam felizes com o mar e falam-lhe com a pele encostada ao coração que constrói amores concretos como ondas esticadas na areia fina que vive nos dedos dos pés. o mar agradece em gestos simples que muitos não encontram favor mas as crianças sobram de pronunciar. as ondas são as raízes que autorizam candura e cavalgam medos para trás da vida. as ondas fazem simplicidades bonitas e levam antigamentes enrolados para muito longe do mundo. se é assim a menina aprecia ficar presa a uma onda possível de acontecer amigos com raízes. Pousei a chávena devagar. gosto muito desta estória murmuras-te com a pele atravessada de poesia a penetrar sono nos teus doces olhos.

2009-07-13

terra do brasil

cheguei a terra do brasil fazia noite de calor. o hotel ficava em frente ao mar. o hotel não era bonito nem feio. o hotel era bom porque me permitiu descansar. o quarto era muito colorido de cores brancas. no brasil as pessoas vivem de branco como a luz. tinha uma janela grande e aberta às ondas trazidas do mar. era muito bonito de sentir as ondas a desabrir de fúria a saber a mel na areia branca. tinha uma cama a reclamar-se de insegurança porque estava juntinho à parede. pousei a mala que trazia no coração. já havia tempo que tinha decidido não precisar de coisas para passar bem. foi nesse tempo que arranjo sempre uma mala com histórias de bondade e me viajo nela. desabriguei a cama do escuro que lhe fazia e levei-a para perto da janela grande e aberta. não tinha a certeza de querer oferecer ao corpo um banho. o suor do brasil na alma é como flores de cheiro doce na mata de madrugada. deitei-me em cansaço e esperança e creio que antes de abrir os olhos ao mar sorri como uma criança com presente novo que ainda não chegou. fazia uma brisa tão leve que só o silêncio da presença sentia de abundância. emprestei o respirar à lua e de encontro à água do mar que sabia morna quase a sentir dormi em sono profundo. acordei cedinho porque no brasil as pessoas gostam de viver. fui em jeito de chamamento para a praia. os deuses gostam da praia e de pessoas bonitas. e eu também. ao caminhar nos pés lentos ia acontecendo um caminho que parecia repetido do passado. lembrei muitos pés marcados na areia e todos os caminhos eram singulares e por isso tão cheios de beleza. nessa manhã os pés levaram-me a cruzar em bom dia sincero com um rapaz moreno de pele salgada. descobri que sentir bom dia em sotaque do brasil torna o desejo mais forte de acontecer mesmo. que faria o moço tão cedo na praia. no brasil são todos moços e moças de sorrisos abertos. perguntei. aceito a condição óbvia desta verdade mas às vezes bicho humano com curiosidade guarda pergunta como segredo no cofre. nunca foi jeito de entendimento este costume do meu povo. sou professor de windsurf com v mais vivo de verdade a lhe sair da boca. tinha os dentes tão brancos que duvidei ser dele ou de bicho elefante mesmo. acho que fiquei preso no sorriso de balançar do moço quando lhe montanhei tanta perguntas de prazeres em experimentar. em quanto tempo posso aprender. quanto tempo fica cá. moço sábio este. sete dias. então sete dias para aprender. demos corpo ao negócio em moeda que negócio de alma que me viu sorrir já estava estendido como toalha na praia. continuei a caminhar. se os passos desenhassem sentimento nasciam ali salpicos de mar na cara em dia de sol quente. nesse primeiro dia à tarde para espanto que não espantou meu ser conheci Mimi, mãe de santo de ofício e lavor de espírito bom. espírito mau não é coisa que crie raiz meu filho. no brasil as pessoas mais velhas tratam as pessoas mais novas por meu filho. e eu gosto. foi o primeiro ensinamento de entre muitos que lhe veio à voz vindo do coração pleno e puro. Mimi era típica mãe de santo, gorda pele esquentada pelo sol e saber olhos meigos e lassos boca grande para dizer silêncios e desdizer bobage. no brasil quando desacontecem coisas escusadas diz-se bobage. ás vezes fumava um grande e interminável charuto. para nevoeirar os espíritos ruins e trazer no cheiro genuíno do tabaco o perdão. aqui perdi conta do número de ensinamento. não importa. riqueza de mãe de santo não conta número de figos na figueira do quintal. a minha relação com Mimi acampou em nós tanta descoberta tanta emoção tantos sentidos de amor que adiei mesmo interesse em aventurar o corpo no mar com o professor de windsurf. gosto do musicado de azul da palavra windsurf. e como foi no primeiro dia, conhecimento do professor de manhãzinha cedo e conhecimento de Mimi mãe de santo tarde de sol continuei a passear na praia durante sete dias aí pelas cinco da manhã que é hora de nascimento. e continuei a encontrar de bom dia o professor. eu dizia bom dia. o professor dizia bom dia. nada mais. cabe a vida todinha neste desejo quando amamos o mundo aos outros. eu não deitava mais palavras em faladura e continuava a caminhar. no último dia eu disse bom dia. o professor disse bom dia. eu disse hoje é o último dia que estou cá. o professor disse eu sei. e continuei a caminhar até as pernas e o coração me pararem o entendimento. voltei em passos de trás que ás vezes é preciso recuar para nos darmos de avançar com força e certeza. estou curioso. fizemos um acordo eu você e o mar até combinamos pagamento de dinheiro que serviço bom merece préstimo. eu não vim às aulas de windsurf but yet, eu digo às vezes muitas vezes but yet em sotaque de inglês, eu continuei a caminhar e a nos dizer bom dia. você não perguntou porque não cumpri acordo de promessa como jura de desfinjimento. ele sorriu. os brasileiros sorriem de vida. disse não veio e daí. insisti como mosca em bolo de canela que mãe faz em dias de domingo. não precisa de dinheiro. não sei se voltou a sorrir de novo ou se desmanchou um sorriso para falar e refez em boca de humildade. preciso sim. tenho família dois filho e mulher pra cuidar. mas você não veio e daí qual o problema. os brasileiros quando não acham problema na vida porque encontram sempre gesto de simplicidade dizem e daí qual o problema. No brasil aprende-se amor em passos lentos e suados ao sol.

Ao Bal.





































2009-05-05

constatação 6

Gosto de arrastar os pés afundados na areia e imaginar o caminho para outros pés.

boa noite

ouvis-te. o quê. chiu. estás a ouvir. o quê. chiu. fala baixo. ouves. o quê. anda cá. devagar. muito devagar. encosta aqui o corpo. mais. fecha os olhos. não, fecha mesmo os olhos. assim. ouves. o quê. deixa que a alma fale pelo coração. puxa o lençol como se fosse apenas um fio de linho. puro. branco. imaculado. imenso. quente. diz boa noite aos pensamentos que já foram e nunca serão senão talvez. deixa-te adormecer em sono de estimação. isso. ouves. o quê. o silêncio do teu dormir doce.

constataçao 5

às vezes, em jeito de preguiça boa de não importar, deito-me sem lavar os dentes e durmo serena.

2009-04-22

constatação 4

quando sorrimos para as pessoas, as pessoas para quem sorrimos sorriem para nós.

gira. sol.

um dia, por detrás do tempo, chegarás a descer uma colina de girassóis. e também girarás. ao sol. girassol.

a chuva ficou. dizem

num dia de sol mas que chovia dentro do corpo ofereceste-me uma tristeza. quase cedemos à noite que faz ali naquela tarde. encolhemos os dedos para não dizer adeus do que sentíamos. aprendi que uma tristeza não se diz. uma tristeza não se empresta. pontapeamos a sorte que deixou de nos unir. desapertamo-nos num abraço. a chuva ficou. dizem. reaprendemos o lugar das nossas almas.

constatação 3

gosto de abraços longos e demorados esticados ao sol de tanto saber bem.
se eu soubesse manejar a palavra sorriso tropeçava nos raios de sol que fazem de dia e apertava-os até abrandar as tristezas do teu ser. do meu ser. de todos os seres.

empresto o meu coração à areia e adormeço

empresto o meu corpo à areia e adormeço. escorrego no tempo onde ganhei o hábito de serenar o que sou e o que vou ser. espreitei a sensação de sorrir e na pele do corpo por acordar tive saudades de dizer o mundo com um olho meio aberto meio fechado. sabes como é. era um fio de sol possível de bem-querer. tombo este respirar cadente tranquilo de encontro às nuvens que se apagam e roçam o céu em silêncio. soube-me viva porque decifrei os passos abençoados das gaivotas. e porque o meu coração te lembrou.

coisas do coração mesmo

fez-se um silêncio que eu não consegui engolir na minha garganta atrapalhada. tinha uns olhos meigos de olhar. não sei bem quando começou. se calhar já tinha começado sem que soubesse explicar nada. se calhar não tinha ido embora adormecer a voz a falar por cima de mim. uma mão nas costas a me puxar mais contra o seu corpo. a outra mão ficava meio lenta meio fina no meu cabelo a coçar-me de dar sono. Sono bom de fingimento. depois coçava com as duas mãos cheias. eu tinha umas quantas lágrimas dentro do corpo e tive vergonha que me olhasses lá para dentro. acho que tiveste cuidado para não sacudir muito. podiam cair lágrimas. daquelas salgadas de engolir. daquelas que se choram mais pelos olhos que pela voz. nem vento nem barulho nada só o sol assim. estrondosamente de se gostar. nesse dia o galo cantou muito enganado nas horas e eu ri muito. rimos muito. eu ri para ti nuns lábios de felicidade e magia de quem está de bem com a vida. pausei para não avançar na minha cabeça escondida este sentir. acho que ias acreditar. coisas do coração mesmo.

2009-04-08

constatação 2

as pessoas quando não sabem como ser felizes fingem que são felizes.

constatação 1

todas as pessoas velhas usam placa de dentes e eu acho bonito.

na fnac

A journey inside myself.
Like the wolf.
With no fear.
Like the wolf.
With no tear.
Like the wolf.

quase dormis-te dentro das minhas mãos

leio: ‘ os dias mágicos passam depressa deixando marcas fundas na nossa memória que alguns chamam também de coração’. no fim da viagem as mãos emprestaram cheiros adoçados de maresia aos teus cabelos despenteados. andei devagar de propósito para não te desassossegar. quase dormis-te dentro das minhas mãos. e quase te abracei. mas já era tarde. cumprimentamos todos. despedimo-nos de todos. eu aproximei-me de fininho. tu aproximaste-te em sorriso desajeitado. afinal os olhos brilham à noite quando já ninguém parece reparar porque estão à toa dentro de gaiolas como as gaiolas dos pombos. parece que pedimos um café a mais e quando cheguei à mesa onde estavam alguns alguém perguntou para quem era aquele café. e as nossas bocas arejaram um ruído tipo estalido de porta enferrujada e velha é para ti. sem pressão dividimos a cadeira e o café que não era de ninguém. e enchemos o momento de prazer pelo tempo dentro do tempo. a campainha tocou. fomos. ficamos separados mas as mãos emprestadas para mim tiveram o cheiro do mundo todo ali. as luzes apagaram-se. endireitei-me na cadeira para não atrapalhar os sonhos que estavam a chegar. por favor desliguem os telemóveis. o espectáculo vai começar. era um mês de março. o vento passava devagar e as palavras eram mais um segredo que um barulho. quase não me importo que a viagem fosse mais longa.

era sábado

ficamos ali no tempo quieto à espera que acontecesse alguma coisa. estava uma chuva miudinha lá fora. a cama estava morna. dormimos juntos. porque sim. lembro o silêncio sincero de nós. púnhamos frases devagarinho ao aconchego e depois adormecemos a fingir. as mãos untadas a brilhar puxavam um mar de sonho só porque nos falamos sentidos tranquilos cheios de inocência de brincadeira que pareciam infância. os livros ficam bem ali assim coladinhos ao chão virados ao céu escuro como se fossem muito leves. e mesmo sem fechar os olhos abanamos os corpos tipo chuvisco e rimos. vi sorrisos pequeninos nas nossas caras. enroscamos as almas sem fazer ruído e começamos a respirar fundo sem corrigir nada. como se nunca houvesse a sombra das horas. ficamos ali no tempo quieto à espera que acontecesse alguma coisa. e aconteceu. um bafo quente tocou-me na cara. já vamos. desassossegados na despedida que não queríamos continuamos um abraço de demorar. virei-me e cativei-me no cheiro do incenso poético que já não ardia. a porta abriu. a porta fechou. pensei hoje vou acabar de ler a Alice no país das maravilhas. e adormeci. com amor. daqui a nada o sol iria assobiar na janela. era sábado. era sábado tranquilo.

assim como num filme de cinema de amor

um dia com o sol assim muito bonito assim todo amarelo assim todo a brilhar no corpo. um dia em que a praia é imensa assim só para nós e as ondas vêm beijar os pés descalços. um dia a descansar assim e a ler e a falar palavras de silêncio suave. um dia em que brincamos assim de manha até perto da hora do sol pôr e as rochas grandes e quentes escondem a maneira como nos olhamos. um dia em que a areia se entranha assim nos teus caracóis e nas peles e nas unhas e fica tudo bem. um dia em trocamos assim mar nas mãos juntas em concha e coube lá todo o mundo. um dia de verdade assim perguntar-te-ei se queres dar uma volta comigo na praia. tu dirás que sim. e a volta será muito rápida porque a calma morna avançará e ficaremos um bocadinho assim em câmara lenta como nos filmes de cinema de amor. um dia em que as gaivotas quase nos tocam assim perguntar-te-ei se queres dar outra volta. tu sorrirás e dirás que sim. e como não vamos querer dar outra volta vamo-nos sentar nas rochas grandes e quentes e ficar. com vergonha e vontade. então talvez porque o pôr-do-sol nos acolherá assim talvez para dizer que a vida é tão grande daremos mais uma volta pela praia mas já de mãos dadas. assim como nos filmes de cinema de amor mas a sair da tela. assim muito bonitos.

a mão que marca os livros

alguns anos depois encontrei-te num centro comercial a almoçar com o olhar pousado no prato afundado de comida que cheirava a saudade. sabia que estavas lá por força de alguma coisa porque na verdade nessa tarde de sábado deslizarias o corpo para o sol. ambas tínhamos motivos para nos amarmos. nunca me espantou como houve nestes alguns anos o entendimento tácito do nosso gostar. se não deslizo no equívoco de quem fica do lado de cá da vida aceito as forças para recordar o veludo do teu abraço doce. na ânsia desmesurada de te sorrir para sempre enterrei o silêncio do momento e avancei com um olá como estás. ficamos sem pausas para dois desenfreados monólogos com medo que uma atenção devota vinda dos corações nos lançasse num convite de amor. incondicional. estou bem. abracei-te. abraçaste-me. abraçamo-nos. de infinito. e tenho sempre à mão a mão erguida ao céu que marca os livros. está partida. a mão. Falta-lhe um dedo. na mão. tem dor. está erguida ao céu. marca os livros para me serenar a descoberta desenfreada. em Itália escreves-te nas costas da mão partida ‘contigo é igual: sente-se uma necessidade de estar perto e voltar o quanto antes’. está erguida ao céu. a mão. 'lembrei-me de ti porque as cidades são definitivamente angélicas’. escreves-te. nas costas da mão. partida. erguida ao céu. a mão.

2009-04-02

entre o meio-dia e as três da tarde

acariciamo-nos com mãos e dedos de palavras sem antever a ausência que os olhares tornados de histórias possíveis abraçavam. estava tão nervosa como se fosse um exame de liceu que ditava a genialidade do que não é . estivemos meses a ressonar palavras entre copos vazios de comentários úteis na altura que nos faziam sentido. trinta e cinco anos de idade não nos bastaram para passar à frente da falsa luxúria com que às vezes nos servem o perdão em bandeja de prata. sem preâmbulos fomos os anfitriões da mais histórica das nossas histórias. soube que foste embora sem estremecer a alma. daquele instante para a frente seria diferente do que já conhecíamos. ainda faltou ouvir velhos êxitos dos anos oitenta. estivemos meses a sonhar projectos sem critérios. valiam apenas as viagens subterrâneas que a ousadia do vento agarrado no peito em rajadas nos permitiam acontecer. estivemos tempos infinitos a falar e no fim agradeces-te por ser tão boa companheira sem aperceber que não era uma virtude mas um desaire no caminho alternativo à contorção natural da minha bondade. arranjas-te emprego na baixa e foste morar para lá. tudo porque quer ter filhos e o relógio biológico não engana. é sempre assim com as mulheres depois dos trinta vaticinou uma das tuas novas mas velha vizinhas que me soluçou ter parco pé-de-meia para alimentar o espírito depois do velório do corpo. desacreditei das investidas daquela mulher muda às suas próprias confissões e à beira das complicações inerentes do rastilho fatal daquele acaso que me levou lá os olhos da mulher que é tua nova mas velha vizinha descobriram a única verdade que não pronunciou com a boca. confirmou a gemer ecos de verdades clandestinas e nessa hora esquecida fitou-me com os olhos lassos de tanta compaixão que só é possível em almas conhecedoras e disse com as mãos finas anda hoje almoças comigo. e nessa hora esquecida apercebi-me que tudo o que é importante acontece entre o meio-dia e meia e as três da tarde. e nessa hora esquecida entre o meio-dia e meia e as três da tarde percebi que o desígnio dos céus era escrever esta exacta despedida. depois fomo-nos embora e nunca mais ressonamos palavras. dormino-nos apenas em insónia.

é como pequenas bolhas de ar

e esta dor a do amor é como pequenas bolhas de ar. flutuam leves invisíveis aos olhos pesados da chuva. palavras desnecessárias que inventamos para criar artifícios como as novela que contam histórias afundadas no pouco alento de quem fala sem o dizer. empurro a timidez do meu corpo para falar de coisas que não se levam nada a peito. vou na procissão a segurar no andor em dúvida se sou deus para venerar o milagre que ainda não sei o nome. cantam-se rezas com asas à espera que alguém não volte a nós para fechar a janela onde as colchas estão estendidas. lambo a vida como os gatos lambem o pelo deitado ao sol. serenamente. gosto assim. vão sem mim que eu vou lá ter. ainda tenho muitas almas para escrever.

2009-03-27

liberdade pra dentro da cabeça

enfiei a mão no buraco de uma das pedras grandes onde costumava balouçar a inocência. procurava um grão de areia que se tinha abandonado para fazer brilho no pontão onde os pés intermináveis das pessoas se alongavam com destino ao mar. numa nesga aberta entre dois suspiros de musgo esverdeados pedi para virem até aqui levantar a pedra grande que estava a calcar a minha sombra. jurei a pés juntos com o rosto do avesso que vi o céu do mundo naqueles instantes de dor serena. telhados de abismo coleccionados de tão antigos que são insuflaram a criança que sou debaixo da chuva miudinha. e os medos vão sendo moldados com colagens infantis coloridas e dedos cheios de cola que juntam peças às vezes perdidas às vezes esquecidas. dizia-me por favor as horas. é sempre em frente respondi com peito generoso de quem quer aceitar o rastilho da periferia para tratar de assuntos do coração. pode ir devagar pode parar pode o mar chegar e iluminar a pique o amor. acolhi o resto do verão aquela força presa de sombra enrolada em ligaduras como o primeiro feito da batalha que me trocou as vontades. tentei desculpar-me e era justo que não me reconhecessem a patente pelo sucedido. perdemos a graça inicial de sorrir de excitação pela vida. interrompia-me de meia em meia hora para mergulhar em mim para me lembrar de meia em meia hora que assim não era bom mas também não era mau. era só assim. e de noite enquanto os outros esgotavam argumentos para não verter uma lágrima porque mancha os lençóis do leito que nos lembra a todos que estamos vivos e mortos ao mesmo tempo eu escrevia compulsivamente movimentos ritmados de amor e prazer que duraram para sempre e me salvaram as vidas muitas vezes disseram-me. ando outra vez às turras com uma insónia. Depois de uma emboscada clandestina do demónio interior que disparou três balas para não me acertar em nenhum órgão vital apareceu a transpirar um observador oculto imaginado e real esboçando um ar de troça evidente pelo fracasso emproado da suposta alcunha de vencedor. veio a correr por isso as gotas largas de suor que agradeci. no meio dos silvos cavernosos não se é capaz de distinguir uma flor que teima em nascer. é preciso recuar. liberdade pra dentro da cabeça. gosto desta música.

2009-03-12

regaço quente de olhos azuis

de vez em quando fazia naufrágio de mim e aconchegava-me no regaço quente da sua pele velha. a minha avó conseguia sempre pôr-me os olhos de amor no corpo. nunca estavam cansados porque eram olhos húmidos de quem viveu muitos passados como a água do mar. e num segundo de eternidade doce desabavam em cima de mim todas aquelas rugas movediças cravadas de infinita dor de quem já foi. sentava-se ao comprido com a manta a aconchegar do frio que faz lá fora. o silêncio do peito carnudo acariciava o anúncio da morte enganada do dia anterior. envolvia-nos tanta doçura como a fotografia em que pegava em mim ao colo e de me amou para sempre. e se descalçasse as botas e me quedasse à sua beira. ensine-me a fazer renda. uma pano de renda grande que aprove o remédio mais radical das fraquezas. os olhos azuis fartos de claridade sobem-lhe à garganta e silenciam palavras melodiosas e resplandecentes. delicadamente soube pegar na linha âncora que atravessou o meu dedo em duas voltas. gotas pequenas de sol transformaram-se em flores em folhas em quadrados simétricos em cruzes e corações fortes sedentos de liberdade. e franjas no fim soltas e dependuradas para me lembrar do amor livre. olhei para a alma profunda e respirei aquele momento. era aquilo mesmo. engoli o ranho das lágrimas que se igualaram a deus. serenamente distraidamente galgou as escadas do sono da noite que se adivinhava, meteu as mãos no coração já não sei se o dela se o meu não importa e dormiu como havia muitas noites não dormia. os homens saindo de si pairam acima do arfar dos grilhões que os prenderam à maldição da condição de pedintes. beijo vezes sem conta aquela cara gorda enrugada de veludo e riso amável. tanto azul. tanto sentir. sussurro eu sei de um túmulo de montes verdes de milho e pasto como aqueles da aldeia. foi aí que a minha avó decidiu morrer o corpo e não morrer de si. por opção disse-me.

2009-03-09

uma costura tão perfeita que parece à máquina

às últimas luzes da tarde despejei no balcão de madeira a aflição inviolável de quem quer salvar a vida. um rasgo transparente tinha-me invadido o corpo quente. desejei não ouvir o som daquela tesoura emperrada parada justamente ao meu lado com garras de cortar tudo a direito. disse era para fazer aqui uma costura por favor. já estamos fechados. e pelo adiantado da hora e do volume de serviço a costureira não vai poder atender mais ninguém. fiquei lívida. rodopiei aos tropeções dentro da minha cabeça porque a avaliar pelo corpo não tinha saído do mesmo sítio. se quiser podemos chamar um táxi. não percebi. agoniei. decidi não sair do estabelecimento porque o letreiro era muito claro e não podia haver lugar para equívocos. Fazem-se bainhas em almas descosidas e corpos usados. foi então que pedi por iniciativa própria uma agulha e uma linha de costura. os dedos finos ergueram-se languidamente como que a recuperar a lucidez do momento. não fora o buraco que me tinha levado até lá ficaria tentada a esboçar um sorriso de orgulho destas mãos em labor respondentes ao meu apelo. cozi a dor com uma linha de cor garrida para não me esquecer que tenho uma costura. sobrou linha na agulha. costurei-me ao mesmo tempo que me salvei. e nesta entrega árida a costureira que não me atendeu porque já estavam a fechar e o volume de serviço não permitia atender mais ninguém mostrou-me que eu tinha unido as duas forças o corpo e a alma. tinha uma costura tão perfeita que parece à máquina disse-me acabando um serviço num corpo consumido. agradeci. saí com uma dor de alívio.

talvez vá para casa esta noite

de passagem por um lugar alguém que conhecia mas não me recordo o nome tinha deixado uma cama ali para que revezasse as dores nas costas com as da alma porque estava ali por solidão. por solidão de tanta gente. soube de imediato que os acontecimentos se converteram num discurso repetido e oco como uma fotografia abatida pelo tempo desapaixonado e morno. de tempos a tempos respirava medo da solenidade da morte anunciada. questiono a possibilidade de costurar as recordações numa cicatriz de meio palmo. Num novo impulso ainda no meio de manobras de animação (porque não se repete o simples facto de animar os homens) senti atrás de mim passos ocos. tinha uma sequência vulgar de quem toma conta do espírito da filha morta. passou tempo. não percebi quem me ensinara ou de que forma até então não me lembrava de ter visto lágrimas dentro de água. atravessei de uma margem á outra. e ainda acredito que no clube da virtude da vida se constroem arquitecturas de pontes num só fôlego. aplaudi a vida inteira. a agitação de mim perturba o repouso das três memórias. elevei-me com um sorriso largo padecido sem pressas. testemunhei o estômago vazio não a alma. talvez por apreciar a alucinação da bebedeira de boa índole com que vejo a minha varanda que mais não é do que uma ressaca esfarrapada da possibilidade de ser vi que um homem que não quer ser salvo curva-se de aflições perante as suas melhores memórias. agrada-me o silêncio do mar revoltoso e do fio que a manta protege e da madeira que acolhe e da areia entranhada nos dedos finos e do corpo profundamente livre e das histórias dos sonhos que a lua testemunha numa narrativa riscada de sentidos. que sentem. nunca gostei de régua e esquadro. talvez vá para casa esta noite e acabe por ficar lá a tornar possível.

2009-01-28

não tinha sono nem vontade de o tentar

não tinha sono nem vontade de o tentar. dormi um sono oco. o sono dos culpados a latejar morno e lento. já tinha visto esta ilusão e acordei ao alvorecer num quarto de hotel negro e vazio. fazia silêncio que se sentia no estômago. no corredor cheirava a café e pão fresco. esperei-me durante um tempo na banheira tentando lavar a alma iludida. reservei-me aquela imagem em desuso de uma mulher banhada em nuvens de espuma. turbilhão de ideias. eram palavras tão solitárias e difíceis de explicar que os olhos não conseguiam conversar. refugiei-me no abismo ferida de identidade. o telefone tocou. senti que o muro daquelas paredes me apertava a garganta e à falta de palavras mordi a voz. consenti descer em meia hora. soube nesse instante que não o faria. o rumor dos passos do quarto ao lado confundiu-se com a alavanca do elevador. fechei os olhos. parei. para saber depois continuar. havia um homem ao dependuro. como se a oferecer-se maior coragem para ver o mundo ao contrário. outros viram um corpo tão amontoado de solidão tão inerte de burrice como outra coisa qualquer. senti o juízo lamber o coração perdido. sepultado numa claridade letárgica. e eu não quero ser nada senão o sentir duma réstia de felicidade. a banheira cuspiu a água e o meu corpo emergiu confundido com as estátuas dos anjos pendurados no beiral da janela. talvez fosse mais fácil descer os olhos em pretexto de circunstâncias inequívocas como que apanhada num pecado que não queremos voltar a cometer. os anjos perscrutam a alma e o universo inteiro interpõe-se secretamente na vida. tudo o que fazemos é parir consternação com tal fúria que não percebemos o alcance do amor. tropeçamos em alguém que não tem medo do mundo e achamo-nos capazes de conter a hemorragia da sombra do que somos. há piores prisões que as palavras desmoronadas em assembleias secretas de autocomiseração ao alcance dos outros. estou capaz de errar mais do que nunca. porque não será erro senão experiencia. permito-me alterar o padrão. senti um ligeiro frio na boca. em tempo de mudança todos somos espiões dos nossos próprios actos. desenhei um sorriso. Um manto de inquietações que se punha nos meus lábios não sei se vindo de dentro mas dominou os pensamentos como se receasse ficar no recinto. e se esta vida se desmoronasse havia de ser o momento de sorrir. julguei destilar o medo por razões que me estiveram vedadas. observei aquele gigante que vagueia como uma alma sem dono e balbuciei a única coisa que me fez sentido para agigantar ainda mais a certeza do que sou. o amor cura. saio do quarto que não me pertence. fecho a porta sólida que contrasta com a certeza liquida que tem sussurrado a verdade. fixei o indicador na fita cola que ampara um papel escrito. ao centro da porta do quarto que não me pertence. não ao lado. não em cima. não em baixo. ao centro da porta do quarto que não me pertence afixei uma nota. fui à minha procura. volto em breve. qualquer assunto pf ligar. deixei o meu contacto. quero que saibam onde estou. a senhora da limpeza observou-me num misto de receio e ousadia que o calor artificial do ar condicionado do hotel parecia ter-lhe congelado o rosto.