2007-11-26

deambulando: rua e decoração de natal

entre o ódio e o amor encosto-me a ti na esperança que me ampares.
denuncio-me encostada à rua que tantas vezes não percorremos.
a decoração de natal enjoa-me. fiz uma lista de compras.
não lhe confiro sentido. e acosso-me neste não sentido que alguém entenderá.
reclamo-me novos óculos.
a tua rua é estreita. passaremos mais vezes e de cada vez será a primeira.
vinte por cento de desconto na compra superior a duzentos euros.
agrada-me a espontaneidade de complexos tentáculos de saber que não te sei.
leve três pague dois. só hoje.
financio um gesto furtuito. aceitamos crédito.
aceitamos sentir. hoje. sem desconto.
proponho-me organizar uma expedição à tua cidade. passos incertos.
deambulando. deambulando. lânguida serenidade da experiência.
sou espect-actor de uma nova poética do sentir. reconfigurar a expressão do corpo e aceitar o lusco-fusco do desenho a tinta da china sem papel.
trilhos. caminhos. passagens. margens.
ausência de mim. em ti. num colectivo estonteante.
saí. a decoração de natal enjoa-me.

2007-10-06

casaco de pele e perfume chanel

Vais sair? Leva o casaco de pele. E não te esqueças do perfume chanel.
Pinta a cara de modo a esconder a verdade.
Usa um baton que te deixe dizer do que serás só metade.
Sorri lá fora para todos como um boneco fabricado.
Daqueles que as crianças embalam. Como um deus adorado.
Caminha em passos apressados com destino incerto. Não importa saber para onde vais.
Deves deixar-te conduzir pelo ritmo frenético do trânsito maldizendo o tempo e a falta dele. Culpar o céu e o inferno pela eterna incerteza do bem e do mal. De uma certa conduta imoral.
Pelo meio comer uma sandes em pé ao balcão.
Alguém pede uma esmola para comer uma sopa e dizer não.
Fumar um cigarro sem sabor beber um trago de café amargo pensar no futuro e no amor.
Na rua as vozes mudam das gentes que passam despidas de um traço porque são todas iguais.
E banais atravessam para o outro lado e entram no autocarro e picam o bilhete. No meio um paquete [que a encomenda tarda na entrega da doutora da caneta permanente da rua do Intendente].
E ausentes no olhar de quem vai e vem. E vai e vem. E entra e sai. Gente que disfarça o anonimato desejado com um eloquente como vai. Se por delírio o vizinho [que há dez anos se senta no mesmo banco da mesma carreira sempre à minha beira] cujo nome não sei porque nunca lhe perguntei tenta uma conversa na hora do trânsito está muito calor viu as noticias um horror saio na paragem que se segue. E aguardo tranquilamente o próximo transporte quer me conduza até à morte.
E aqui fico lânguida e eterna amante derrotada desta sina que vivo por obrigação. Não porque venha do coração. Deixo-me arrastar sem mais força para lutar. A mentira prevalece mitigada na verdade que me fazem crer ser o caminho certo. Mais vale parecer. Que ser. De que vale questionar se isso te vai fazer sofrer. A vigilância é inimiga da vida. A sensatez não se conquista compra-se numa revista. A lucidez deprime. E o resto do filme já se sabe. Não é que anime.
Abre. Abre uma caixa de Prozac que por milagre te devolve a vida. Não teimes no amor. Na liberdade. Na poesia. Nessas formas paralelas de uma quase heresia. Aceita um sorriso de plástico que te ofereço num embrulho. Deita fora esse entulho. Veste o casaco de pele. E não te esqueças do perfume chanel. E se esta meda que acabo de escrever nada te diz eu digo és (in)feliz. És muito (in)feliz.

(1 Agosto 2003)

2007-10-03

a casa nova

a porta está entreaberta.
não sei se me dizes para entrar ou ficar em espera.
campo de intermitentes batalhas este nosso voto em branco de luto.
asseguro o teu ínício só. em angústia passiva que te conheço desde sempre.
prescruto os comentários de ninguém. surdez louca das vidas em mudança.
arquivo a ilusão de um sorriso eterno.
qualquer um pode ler no letreiro da entrada bem-vindo.
desacostumada humidade esta que me exclui do teu destino.
continuo a esperar-nos. num qualquer dia. ontem talvez.
no dia seguinte confirmo o rumor que é pouco provável que me sente contigo.
os camiões da limpeza passam para levar a cegueira dos meus crimes. atei o saco com três nós.
é como se tivesses mandado comissariar a inconfidência deste nosso sofrer.
baixei a cabeça e olhei-te. não me reconheces-te.
tenho estado á tua espera dissemos sem nos olharmos.

2007-09-22

ida ao ikea

participo na arrumação do teu projecto iniciado.
envolvo-me em compras de ilusões a cores.
comparo preços de artefactos novos que afirmas trazer com promessas de um novo viver.
pesquiso sorrisos em forma de brinde nas prateleiras expostas.
gasto a possibilidade de te acompanhar.
desarrumo o meu pensar enquanto mexo a vida em coisas nenhumas.
quase gosto desses pratos. e desses copos. e dessas toalhas. e desses lençois. e desses talhares. e dessas almofadas. e deste vazio do armário.
procuras a referência das cortinas. eu procuro a saída de emergência.
caminhamos lângidos de fita para medir os passos dos outros. não os nossos.
paramos em silêncio. deambulo tonta por entre o teu sentir ambíguo.
alinho as compras pelo código de barras que o tapete engole pesarosamente.
o sofá é estupidamente desconfortável para o meu sofrer. compra.

2007-09-16

quando lia natália correia...

tens sangue a escorrer no cabelo
queria lamber o olhar ausente de ti
acossar-me num pérfido desejo de te morrer agora
não depois. não antes. agora
faltam cinco minutos de eternidade para chegar a lado algum

corro na urgência paciente farejando a navalha da nudez
com que estendes a alma na cama
anulo a lembrança do tempo que não tenho
absurda convicção de que te despenharias no carrasco
do grito dilacerante com que te reservas aos anfitriões da morte

estouro com riso à beira do teu caixão
onde derramo água benta para esconjurar
os espíritos malignos da madrugada

na febre gelada deste sacrilégio escolho o bem cruel
e bebo um cálice de aguardente rodopiando
num festejo infantil da impotência do que sou
gesticulo grosseiramente na forja nauseabunda
daquilo que julgo ser capaz

A maioria foi até ao fim
tu não
porque não me dizes agora o que repetias cansadas vezes
como se de uma voz esventrada se tratasse
nasci morta
foi um alívio
e o filho da puta do sinal intermitente que não muda
quanto tempo falta para o tempo da vida metamorfosear
o meu corpo morto

2007-09-14

depois desta morte não há mais nada

Depois desta morte não há mais nada para além do teu olhar sofrido em ruídos ensurdecedores.
Ou talvez haja. O abismo de nós. Em queda livre sem suporte de mim.
Na ausência de ti.

Escudamo-nos em subterfúgios estúpidos. Vazios.

Passos ocos invadem a cama onde os corpos mortos se anunciam. Estamos longe. Muito longe. Pensarão outros que a cama é a paz anunciada depois de um dia de fuga. De muitos dias de fuga. Cansaço que não mata. Mas mói. Mói o negro da nossa presença.

Esqueci-me do teu cheiro. Fujo da tua pele. Agonio se me deito só.
Vomito desesperada solidão se te deitas ao meu lado.
Lembras-te quando fazíamos amor.
E agora resta-nos a complacência dos dias arrastados.
Passos lentos de desnorteados vazios.

Risquei o teu número de telefone na esperança que mo devolvas ontem.
Fiquei de fora. Abri brechas pelas circunstâncias na busca de novos rumos
O programa das relações não foi decifrado.
Lembra-me para comprar um descodificador. Quanto custa ampliar causas evitáveis do estado de nós.

O locutor anuncia uma notícia que não quero ouvir. Diz: o desenvolvimento explosivo das comunicações abre possibilidades gigantescas de difusão de informação. O convidado comenta que a parte fundamental do nosso papel exige um esforço para responder às demandas destas exigências.

Abandonamo-nos amanhã. Imobilizados estendemos os esqueletos nauseabundos de cheiro a morte ao sol onde chovem calhaus de sangue sem cor. A negociação permitirá detectar pontos comuns, identificar vantagens para todos na execução de acções conjuntas. Detesto gravatas. Aborrece-me os sorrisos desordenados do locutor sem destinatário. Esquizofrenicamente aumento o volume da televisão.

Deito-me de olhos abertos para não ver os meus despojos.
Deixei de esperar por ti. Tens um copo de leite junto à cama.

flores murchas

A solidão tornou-se impermeável
A uma folha de jornal
Quedo-me neste banco de jardim
Entrei pelo meu pé no caixão
Ergo-me do chão indiferente aos milagres que alguém vocifera
Comentam maldades na esquina a quem acredita na cegueira do acaso
Um vendedor de flores murchas escolhe o vazio para resgatar nadas
Estou acorrentada a uma lágrima de ferro
Os passos vão pelas ruas e eu não sei parar
Dormi doze horas. Fiquei farta
O coveiro tropeçou no meu sono exausto
Disse que não podia ficar lá
Que estava viva.

2007-09-13

hora de almoço

Almoço com urgência mesmo sem ter compromisso
Mordo a sopa em angústia dilacerante porque me sinto mal
Trinco vidros estilhaçados
Que me rompem lentamente a garganta
O alarme não soou quando chorei
Passei tempo demais a accionar a saída de emergência
A barra não abriu
O tempo passou
Alguém graceja com a água pura da nascente natural
Que não é natural. Nem naturalmente pura
Refugio-me na colher da sopa
Bela inox. Made in Italy.
Oxidei a ausência de mim
A lâmina que retalhou o meu sorriso tem ferrugem
Bela inox.
Este estabelecimento tem livro de reclamações
Reclamo. Reclamo-me.
Compenso o peso das lágrimas com uma fatia de bolo que não sabe a bolo
Incongruente digo à empregada que o bolo está delicioso
Desconexa conveniência. A empregada fica feliz. Eu não.

2007-09-06

sem titulo

assim. sem título.
a recusa em criar amarras dos traços espontâneos desta escrita íntima.
sinto a ausência do papel branco. e do lápis. e da afia. desconfio da duração desta forma de estar. e não querer estar assim. desconforto. ou talvez não. há lugar para a construção.
porque me é necessário partilhar sentidos.