2009-04-22

constatação 4

quando sorrimos para as pessoas, as pessoas para quem sorrimos sorriem para nós.

gira. sol.

um dia, por detrás do tempo, chegarás a descer uma colina de girassóis. e também girarás. ao sol. girassol.

a chuva ficou. dizem

num dia de sol mas que chovia dentro do corpo ofereceste-me uma tristeza. quase cedemos à noite que faz ali naquela tarde. encolhemos os dedos para não dizer adeus do que sentíamos. aprendi que uma tristeza não se diz. uma tristeza não se empresta. pontapeamos a sorte que deixou de nos unir. desapertamo-nos num abraço. a chuva ficou. dizem. reaprendemos o lugar das nossas almas.

constatação 3

gosto de abraços longos e demorados esticados ao sol de tanto saber bem.
se eu soubesse manejar a palavra sorriso tropeçava nos raios de sol que fazem de dia e apertava-os até abrandar as tristezas do teu ser. do meu ser. de todos os seres.

empresto o meu coração à areia e adormeço

empresto o meu corpo à areia e adormeço. escorrego no tempo onde ganhei o hábito de serenar o que sou e o que vou ser. espreitei a sensação de sorrir e na pele do corpo por acordar tive saudades de dizer o mundo com um olho meio aberto meio fechado. sabes como é. era um fio de sol possível de bem-querer. tombo este respirar cadente tranquilo de encontro às nuvens que se apagam e roçam o céu em silêncio. soube-me viva porque decifrei os passos abençoados das gaivotas. e porque o meu coração te lembrou.

coisas do coração mesmo

fez-se um silêncio que eu não consegui engolir na minha garganta atrapalhada. tinha uns olhos meigos de olhar. não sei bem quando começou. se calhar já tinha começado sem que soubesse explicar nada. se calhar não tinha ido embora adormecer a voz a falar por cima de mim. uma mão nas costas a me puxar mais contra o seu corpo. a outra mão ficava meio lenta meio fina no meu cabelo a coçar-me de dar sono. Sono bom de fingimento. depois coçava com as duas mãos cheias. eu tinha umas quantas lágrimas dentro do corpo e tive vergonha que me olhasses lá para dentro. acho que tiveste cuidado para não sacudir muito. podiam cair lágrimas. daquelas salgadas de engolir. daquelas que se choram mais pelos olhos que pela voz. nem vento nem barulho nada só o sol assim. estrondosamente de se gostar. nesse dia o galo cantou muito enganado nas horas e eu ri muito. rimos muito. eu ri para ti nuns lábios de felicidade e magia de quem está de bem com a vida. pausei para não avançar na minha cabeça escondida este sentir. acho que ias acreditar. coisas do coração mesmo.

2009-04-08

constatação 2

as pessoas quando não sabem como ser felizes fingem que são felizes.

constatação 1

todas as pessoas velhas usam placa de dentes e eu acho bonito.

na fnac

A journey inside myself.
Like the wolf.
With no fear.
Like the wolf.
With no tear.
Like the wolf.

quase dormis-te dentro das minhas mãos

leio: ‘ os dias mágicos passam depressa deixando marcas fundas na nossa memória que alguns chamam também de coração’. no fim da viagem as mãos emprestaram cheiros adoçados de maresia aos teus cabelos despenteados. andei devagar de propósito para não te desassossegar. quase dormis-te dentro das minhas mãos. e quase te abracei. mas já era tarde. cumprimentamos todos. despedimo-nos de todos. eu aproximei-me de fininho. tu aproximaste-te em sorriso desajeitado. afinal os olhos brilham à noite quando já ninguém parece reparar porque estão à toa dentro de gaiolas como as gaiolas dos pombos. parece que pedimos um café a mais e quando cheguei à mesa onde estavam alguns alguém perguntou para quem era aquele café. e as nossas bocas arejaram um ruído tipo estalido de porta enferrujada e velha é para ti. sem pressão dividimos a cadeira e o café que não era de ninguém. e enchemos o momento de prazer pelo tempo dentro do tempo. a campainha tocou. fomos. ficamos separados mas as mãos emprestadas para mim tiveram o cheiro do mundo todo ali. as luzes apagaram-se. endireitei-me na cadeira para não atrapalhar os sonhos que estavam a chegar. por favor desliguem os telemóveis. o espectáculo vai começar. era um mês de março. o vento passava devagar e as palavras eram mais um segredo que um barulho. quase não me importo que a viagem fosse mais longa.

era sábado

ficamos ali no tempo quieto à espera que acontecesse alguma coisa. estava uma chuva miudinha lá fora. a cama estava morna. dormimos juntos. porque sim. lembro o silêncio sincero de nós. púnhamos frases devagarinho ao aconchego e depois adormecemos a fingir. as mãos untadas a brilhar puxavam um mar de sonho só porque nos falamos sentidos tranquilos cheios de inocência de brincadeira que pareciam infância. os livros ficam bem ali assim coladinhos ao chão virados ao céu escuro como se fossem muito leves. e mesmo sem fechar os olhos abanamos os corpos tipo chuvisco e rimos. vi sorrisos pequeninos nas nossas caras. enroscamos as almas sem fazer ruído e começamos a respirar fundo sem corrigir nada. como se nunca houvesse a sombra das horas. ficamos ali no tempo quieto à espera que acontecesse alguma coisa. e aconteceu. um bafo quente tocou-me na cara. já vamos. desassossegados na despedida que não queríamos continuamos um abraço de demorar. virei-me e cativei-me no cheiro do incenso poético que já não ardia. a porta abriu. a porta fechou. pensei hoje vou acabar de ler a Alice no país das maravilhas. e adormeci. com amor. daqui a nada o sol iria assobiar na janela. era sábado. era sábado tranquilo.

assim como num filme de cinema de amor

um dia com o sol assim muito bonito assim todo amarelo assim todo a brilhar no corpo. um dia em que a praia é imensa assim só para nós e as ondas vêm beijar os pés descalços. um dia a descansar assim e a ler e a falar palavras de silêncio suave. um dia em que brincamos assim de manha até perto da hora do sol pôr e as rochas grandes e quentes escondem a maneira como nos olhamos. um dia em que a areia se entranha assim nos teus caracóis e nas peles e nas unhas e fica tudo bem. um dia em trocamos assim mar nas mãos juntas em concha e coube lá todo o mundo. um dia de verdade assim perguntar-te-ei se queres dar uma volta comigo na praia. tu dirás que sim. e a volta será muito rápida porque a calma morna avançará e ficaremos um bocadinho assim em câmara lenta como nos filmes de cinema de amor. um dia em que as gaivotas quase nos tocam assim perguntar-te-ei se queres dar outra volta. tu sorrirás e dirás que sim. e como não vamos querer dar outra volta vamo-nos sentar nas rochas grandes e quentes e ficar. com vergonha e vontade. então talvez porque o pôr-do-sol nos acolherá assim talvez para dizer que a vida é tão grande daremos mais uma volta pela praia mas já de mãos dadas. assim como nos filmes de cinema de amor mas a sair da tela. assim muito bonitos.

a mão que marca os livros

alguns anos depois encontrei-te num centro comercial a almoçar com o olhar pousado no prato afundado de comida que cheirava a saudade. sabia que estavas lá por força de alguma coisa porque na verdade nessa tarde de sábado deslizarias o corpo para o sol. ambas tínhamos motivos para nos amarmos. nunca me espantou como houve nestes alguns anos o entendimento tácito do nosso gostar. se não deslizo no equívoco de quem fica do lado de cá da vida aceito as forças para recordar o veludo do teu abraço doce. na ânsia desmesurada de te sorrir para sempre enterrei o silêncio do momento e avancei com um olá como estás. ficamos sem pausas para dois desenfreados monólogos com medo que uma atenção devota vinda dos corações nos lançasse num convite de amor. incondicional. estou bem. abracei-te. abraçaste-me. abraçamo-nos. de infinito. e tenho sempre à mão a mão erguida ao céu que marca os livros. está partida. a mão. Falta-lhe um dedo. na mão. tem dor. está erguida ao céu. marca os livros para me serenar a descoberta desenfreada. em Itália escreves-te nas costas da mão partida ‘contigo é igual: sente-se uma necessidade de estar perto e voltar o quanto antes’. está erguida ao céu. a mão. 'lembrei-me de ti porque as cidades são definitivamente angélicas’. escreves-te. nas costas da mão. partida. erguida ao céu. a mão.

2009-04-02

entre o meio-dia e as três da tarde

acariciamo-nos com mãos e dedos de palavras sem antever a ausência que os olhares tornados de histórias possíveis abraçavam. estava tão nervosa como se fosse um exame de liceu que ditava a genialidade do que não é . estivemos meses a ressonar palavras entre copos vazios de comentários úteis na altura que nos faziam sentido. trinta e cinco anos de idade não nos bastaram para passar à frente da falsa luxúria com que às vezes nos servem o perdão em bandeja de prata. sem preâmbulos fomos os anfitriões da mais histórica das nossas histórias. soube que foste embora sem estremecer a alma. daquele instante para a frente seria diferente do que já conhecíamos. ainda faltou ouvir velhos êxitos dos anos oitenta. estivemos meses a sonhar projectos sem critérios. valiam apenas as viagens subterrâneas que a ousadia do vento agarrado no peito em rajadas nos permitiam acontecer. estivemos tempos infinitos a falar e no fim agradeces-te por ser tão boa companheira sem aperceber que não era uma virtude mas um desaire no caminho alternativo à contorção natural da minha bondade. arranjas-te emprego na baixa e foste morar para lá. tudo porque quer ter filhos e o relógio biológico não engana. é sempre assim com as mulheres depois dos trinta vaticinou uma das tuas novas mas velha vizinhas que me soluçou ter parco pé-de-meia para alimentar o espírito depois do velório do corpo. desacreditei das investidas daquela mulher muda às suas próprias confissões e à beira das complicações inerentes do rastilho fatal daquele acaso que me levou lá os olhos da mulher que é tua nova mas velha vizinha descobriram a única verdade que não pronunciou com a boca. confirmou a gemer ecos de verdades clandestinas e nessa hora esquecida fitou-me com os olhos lassos de tanta compaixão que só é possível em almas conhecedoras e disse com as mãos finas anda hoje almoças comigo. e nessa hora esquecida apercebi-me que tudo o que é importante acontece entre o meio-dia e meia e as três da tarde. e nessa hora esquecida entre o meio-dia e meia e as três da tarde percebi que o desígnio dos céus era escrever esta exacta despedida. depois fomo-nos embora e nunca mais ressonamos palavras. dormino-nos apenas em insónia.

é como pequenas bolhas de ar

e esta dor a do amor é como pequenas bolhas de ar. flutuam leves invisíveis aos olhos pesados da chuva. palavras desnecessárias que inventamos para criar artifícios como as novela que contam histórias afundadas no pouco alento de quem fala sem o dizer. empurro a timidez do meu corpo para falar de coisas que não se levam nada a peito. vou na procissão a segurar no andor em dúvida se sou deus para venerar o milagre que ainda não sei o nome. cantam-se rezas com asas à espera que alguém não volte a nós para fechar a janela onde as colchas estão estendidas. lambo a vida como os gatos lambem o pelo deitado ao sol. serenamente. gosto assim. vão sem mim que eu vou lá ter. ainda tenho muitas almas para escrever.