2007-10-06

casaco de pele e perfume chanel

Vais sair? Leva o casaco de pele. E não te esqueças do perfume chanel.
Pinta a cara de modo a esconder a verdade.
Usa um baton que te deixe dizer do que serás só metade.
Sorri lá fora para todos como um boneco fabricado.
Daqueles que as crianças embalam. Como um deus adorado.
Caminha em passos apressados com destino incerto. Não importa saber para onde vais.
Deves deixar-te conduzir pelo ritmo frenético do trânsito maldizendo o tempo e a falta dele. Culpar o céu e o inferno pela eterna incerteza do bem e do mal. De uma certa conduta imoral.
Pelo meio comer uma sandes em pé ao balcão.
Alguém pede uma esmola para comer uma sopa e dizer não.
Fumar um cigarro sem sabor beber um trago de café amargo pensar no futuro e no amor.
Na rua as vozes mudam das gentes que passam despidas de um traço porque são todas iguais.
E banais atravessam para o outro lado e entram no autocarro e picam o bilhete. No meio um paquete [que a encomenda tarda na entrega da doutora da caneta permanente da rua do Intendente].
E ausentes no olhar de quem vai e vem. E vai e vem. E entra e sai. Gente que disfarça o anonimato desejado com um eloquente como vai. Se por delírio o vizinho [que há dez anos se senta no mesmo banco da mesma carreira sempre à minha beira] cujo nome não sei porque nunca lhe perguntei tenta uma conversa na hora do trânsito está muito calor viu as noticias um horror saio na paragem que se segue. E aguardo tranquilamente o próximo transporte quer me conduza até à morte.
E aqui fico lânguida e eterna amante derrotada desta sina que vivo por obrigação. Não porque venha do coração. Deixo-me arrastar sem mais força para lutar. A mentira prevalece mitigada na verdade que me fazem crer ser o caminho certo. Mais vale parecer. Que ser. De que vale questionar se isso te vai fazer sofrer. A vigilância é inimiga da vida. A sensatez não se conquista compra-se numa revista. A lucidez deprime. E o resto do filme já se sabe. Não é que anime.
Abre. Abre uma caixa de Prozac que por milagre te devolve a vida. Não teimes no amor. Na liberdade. Na poesia. Nessas formas paralelas de uma quase heresia. Aceita um sorriso de plástico que te ofereço num embrulho. Deita fora esse entulho. Veste o casaco de pele. E não te esqueças do perfume chanel. E se esta meda que acabo de escrever nada te diz eu digo és (in)feliz. És muito (in)feliz.

(1 Agosto 2003)

2007-10-03

a casa nova

a porta está entreaberta.
não sei se me dizes para entrar ou ficar em espera.
campo de intermitentes batalhas este nosso voto em branco de luto.
asseguro o teu ínício só. em angústia passiva que te conheço desde sempre.
prescruto os comentários de ninguém. surdez louca das vidas em mudança.
arquivo a ilusão de um sorriso eterno.
qualquer um pode ler no letreiro da entrada bem-vindo.
desacostumada humidade esta que me exclui do teu destino.
continuo a esperar-nos. num qualquer dia. ontem talvez.
no dia seguinte confirmo o rumor que é pouco provável que me sente contigo.
os camiões da limpeza passam para levar a cegueira dos meus crimes. atei o saco com três nós.
é como se tivesses mandado comissariar a inconfidência deste nosso sofrer.
baixei a cabeça e olhei-te. não me reconheces-te.
tenho estado á tua espera dissemos sem nos olharmos.