2008-07-22

para as férias

fazer lista da minha existência.
sentir o sangue branco a escorrer na pele e confundir com a areia estendida.
programar e rasgar o programa.
pensar na morte e tratar da vida.
deixar as recomendações da alma com a d. margarida e dizer para não esquecer limpar o frigorífico.
pressionar o equilíbrio dos tecidos moles que atrofiam o corpo reabilitado pelo sol.
sentir palavras nas minhas mãos nas minhas entranhas no meu corpo na minha alma.
um livro. um caderno. um lapis. eu.
ouvir os olhos que pedem que fales. apertar o silêncio e vomita-lo.

2008-06-30

4h30

acordei só. telefonei. telefonei. não me recordo quantas vezes telefonei. muitas vezes. demasiadas vezes. vesti-me com pressa. não me lembro o que vesti. vesti-me. vesti-me com pressa. desci as escadas com os chinelos que não cabiam nos dedos encolhidos de sono e medo. entrei no carro. pareceu-me uma eternidade. fui no carro à tua procura. fui. telefonei. telefonei muitas vezes. atendes-te. fiz inversão de marcha numa rua nua. não cheirava a maresia. Não cheirava a sol. Não cheirava a dia. Não cheirava a pessoas. Vim com destino a casa. Estacionei o carro. pareceu-me uma eternidade. Lutei com a fechadura da porta porque queria que não entrasse. Entrei. Entrei. Subi as escadas. Despi-me. Deitei-me. Automaticamente deitei-me. Chorei. Chorei. Não sei quantas vezes chorei. Não dormi. Uma eternidade o telefone.

2008-06-02

disse.
adeus.
não fui.
despedida. de mim.
adeus.
disse.
adeus.
adeus.
adeus.
adeus.
adeus de mim.

2008-05-20

a vida é filha da puta. ponto

Não preparei o meu coração para o próximo tremor de terra.
Não consigo ler nem escrever nem concentrar-me nem olhar-te.
Desgastei a alcatifa em gestos repetidos frenéticos porque perdi o teu olhar algures atrás de mim.
Encostei-me ao umbral da sombra do que resta dos sonhos e enquanto não te movimentares a náusea que se enterra no peito vai-nos sufocar.
O teu silêncio trespassa-me os ossos.
Embriagar-me-ei em direcção ao mar para que a desolação do presente deixe de arder cega quando rebentar a luz.
Encontrar-nos-emos esta noite no mesmo pesadelo que teima em vender imagens gastas de afectos e ódios. De areia e cinza. De tempo inútil intacto guardado na boca que não diz. Intensamente.
Passamos a vida numa espécie de mutismo quando nos sentimos morrer.
A vida é filha da puta. ponto.

2008-05-06

história de desencantar

Tinha tanto universo para aprender. Mas o terror daquela imagem aparecia a horas imprevistas. Dizia coisas surpreendentes. Uma coisa sobre o prato principal que vomitas-te com a mesma naturalidade com que os outros falavam de coisas triviais. Como se o mundo de repente fosse absolutamente alheio. Outra coisa sobre aquele ser que não é bem deste mundo talvez porque me apetecia enfiar pelo chão abaixo quando a existência caiu distraída na sopa. A minha relação com a vida quotidiana é desabitada. Não há transparência da palavra se não há preocupação cosntante de celebração de palavras essenciais. Aceito com ingenuidade a negligência com que abdico da exigência de essencialidade. Porque o jantar não é essencial. E no entanto aquilo que distingue o bem do mal é a alienação que te leva a pensar a existência do bem e do mal. Não tem muito substantivo. A secura das palavras tornou-se desnecessária na ligação às coisas. Tenho absoluta confiança na palavra obscuro. O meu encontro com as vozes marca a distância do ponto de partida. A forma de tratamento dos temas escreve histórias destinadas aos outros. Não a mim. Talvez amanhã comece a inventar histórias para crianças que não comecem por era uma vez uma menina que era filha de ciganos. Não suportarei a pieguice do convite para me deitar na mesma cama. Procuro a memória daquilo que não me fascinou na infância para não esquecer lugares. Acontecimentos. Pessoas. Convido-me a mergulhar num maravilhoso mundo de fantasia. Convido-me a mergulhar num maravilhoso mundo de beleza que não acabe em histórias de amor e generosidade que acabam assim essa não mãe essa não. Uma salva de palmas.

2008-04-14

fnac santa catarina

preciso. gostava. quero. preciso.preciso que leias o que escrevo.
como te chamas. susana. quantos anos tens. faço trinta e quatro para a semana. como tu.

2008-01-28

o veneno diluido no café pesou-me a alma

Inclinas-te para o interior do sonho que se apagou na memória demolida de mim. O rosto ficou morto nos escombros de um papel escrito. Talvez um recado caído no chão do corredor que os meus passos davam em direcção a ti. Abri as pálpebras e senti o vento torcido que desceu de uma voz pesada eterna sobre o aço inocente da maçaneta da porta. Segredei nada. Ambos destruídos. Mas tu mal entendias a língua que te segredava. Corto os pulsos e esgueiro-me em sussurro aprisionado para o navio da alma que partiu. O quarto estava escuro. O tempo era muito tempo na linha do horizonte. Como se estivesse a esconder a palavra sol. Escrevi a giz numa parede polida afundei-me em ti. E quando acordei queimei as mãos na surdez do calor que flutuou nos ombros. E abriu-se uma fenda de fogo púrpuro sob o meu rosto de orvalho. Frente ao espelho fingi o sono que não dormi. A morte metamorfoseou a insónia do coração. Pouco a pouco nunca estive aqui. Tenho a certeza que fui envenenada momentos antes de prosseguir com a morte que anunciei há quinze dias. Retomo o monólogo que perscruto nas palavras silabadas no recado de um papel escrito. Talvez estivesses a jantar e não te sentisses atraído para o recado do papel escrito. Penso até que continuas-te a tentar comer, calmamente, sem dar grande importância ao arrepio que me percorreu a espinha mas ao fim de alguns minutos corri para a casa de banho e vomitei a minha existência. Abri-te os olhos com a ponta de uma faca e sentados no banco de um jardim ocorreu-me de repente que não sabia o teu nome.

2008-01-02

na manhã seguinte ficamos com as mãos na cabeça

eu talvez quisesse sorrir.
a palma da tua mão estava aberta.
pousas-te a ausência do teu olhar no sofá encostado à lareira que não te chegou a aquecer.
senti cada instante das noites que nos aproximou.
talvez tivesse querido oferecer-te uma fotografia a preto e branco. tenho quase a certeza que falaria do caminho que falta para chegares a casa. seria uma fotografia nublada de sentimentos, uma espécie de feira de recordações de amanhã que passam em dor por nós. por ti. sacos de lágrimas enbrulhadas em panos aos xadrez, sapatos deixados ao acaso, restos de comida e vinho tinto espalhados pela mesa, cigarros de todos e não de ti, mala enfiada no ombro para saíres com urgência. mas vais ficando porque as portas estão fechadas. a fotografia da feira foi-se tornando num esqueleto de ocasiões carregadas daquele dia que te lembrava os dias anteriores.
às vezes ficavas sentado enquanto comias pesarosamente. comias nada com um garfo sem história da alumínio polido. seguravas uma navalha enferrujada com a mão esquerda. a corda estica até à noite anterior. e antes dessa noite os teus movimentos trôpegos pareciam levar-te a um sítio onde as chamas avançam por uma porta aberta encostada ao teu peito. os teus passos eram um ruído leve. havia uma camada fina de céu sobre o teu rosto.
começamos a chorar-te das sete horas até sempre. a lareira ficou em braseira.
não é muito tempo e a distância para chegares a casa é a de um sopro de luz que vais dobrar e guardar numa gaveta num sítio seguro. porque precisas desse som liso do abrir da gaveta usada. gasta. solta. esgotada. imaginada. vivida. aproximada. distante. ternamente morta.