2009-03-12

regaço quente de olhos azuis

de vez em quando fazia naufrágio de mim e aconchegava-me no regaço quente da sua pele velha. a minha avó conseguia sempre pôr-me os olhos de amor no corpo. nunca estavam cansados porque eram olhos húmidos de quem viveu muitos passados como a água do mar. e num segundo de eternidade doce desabavam em cima de mim todas aquelas rugas movediças cravadas de infinita dor de quem já foi. sentava-se ao comprido com a manta a aconchegar do frio que faz lá fora. o silêncio do peito carnudo acariciava o anúncio da morte enganada do dia anterior. envolvia-nos tanta doçura como a fotografia em que pegava em mim ao colo e de me amou para sempre. e se descalçasse as botas e me quedasse à sua beira. ensine-me a fazer renda. uma pano de renda grande que aprove o remédio mais radical das fraquezas. os olhos azuis fartos de claridade sobem-lhe à garganta e silenciam palavras melodiosas e resplandecentes. delicadamente soube pegar na linha âncora que atravessou o meu dedo em duas voltas. gotas pequenas de sol transformaram-se em flores em folhas em quadrados simétricos em cruzes e corações fortes sedentos de liberdade. e franjas no fim soltas e dependuradas para me lembrar do amor livre. olhei para a alma profunda e respirei aquele momento. era aquilo mesmo. engoli o ranho das lágrimas que se igualaram a deus. serenamente distraidamente galgou as escadas do sono da noite que se adivinhava, meteu as mãos no coração já não sei se o dela se o meu não importa e dormiu como havia muitas noites não dormia. os homens saindo de si pairam acima do arfar dos grilhões que os prenderam à maldição da condição de pedintes. beijo vezes sem conta aquela cara gorda enrugada de veludo e riso amável. tanto azul. tanto sentir. sussurro eu sei de um túmulo de montes verdes de milho e pasto como aqueles da aldeia. foi aí que a minha avó decidiu morrer o corpo e não morrer de si. por opção disse-me.

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