2009-03-09

uma costura tão perfeita que parece à máquina

às últimas luzes da tarde despejei no balcão de madeira a aflição inviolável de quem quer salvar a vida. um rasgo transparente tinha-me invadido o corpo quente. desejei não ouvir o som daquela tesoura emperrada parada justamente ao meu lado com garras de cortar tudo a direito. disse era para fazer aqui uma costura por favor. já estamos fechados. e pelo adiantado da hora e do volume de serviço a costureira não vai poder atender mais ninguém. fiquei lívida. rodopiei aos tropeções dentro da minha cabeça porque a avaliar pelo corpo não tinha saído do mesmo sítio. se quiser podemos chamar um táxi. não percebi. agoniei. decidi não sair do estabelecimento porque o letreiro era muito claro e não podia haver lugar para equívocos. Fazem-se bainhas em almas descosidas e corpos usados. foi então que pedi por iniciativa própria uma agulha e uma linha de costura. os dedos finos ergueram-se languidamente como que a recuperar a lucidez do momento. não fora o buraco que me tinha levado até lá ficaria tentada a esboçar um sorriso de orgulho destas mãos em labor respondentes ao meu apelo. cozi a dor com uma linha de cor garrida para não me esquecer que tenho uma costura. sobrou linha na agulha. costurei-me ao mesmo tempo que me salvei. e nesta entrega árida a costureira que não me atendeu porque já estavam a fechar e o volume de serviço não permitia atender mais ninguém mostrou-me que eu tinha unido as duas forças o corpo e a alma. tinha uma costura tão perfeita que parece à máquina disse-me acabando um serviço num corpo consumido. agradeci. saí com uma dor de alívio.

Sem comentários: